A flexibilidade das suas faces de borracha é o seu maior apanágio, coisa que o torna utensílio de cozinha essencial nas casas portuguesas. Não há massa de bolo, torta ou tarte, ou até de pastel de bacalhau, por mais peganhenta que seja, que resista ao poder do salazar. Por conseguir rapar tudo, garantindo o máximo aproveitamento de recursos, ganhou o baptismo. Muito mais por comparação com a famosa avareza – ou como hoje se diz, austeridade – do seu padrinho, do que com as suas pretensas virtudes. O nosso salazar é um instrumento querido e de uma utilidade insubstituível. Até porque é um dos exemplos perfeitos da constante reinvenção da Língua Portuguesa, ao ter entrado com naturalidade e objectividade para o nosso léxico comum, sem necessitar de imposições legais. A cultura popular legitimou-lhe o nome e manteve-lhe o significado.
No entanto, um idiota, que por acaso é presidente da autarquia de Santa Comba Dão, quer denegrir o bom-nome do nosso rapador de taças e confundir-lhe o seu significado. Nada mais em Portugal pode chamar-se salazar, pois assim já se chama uma espátula! Mas o autarca insiste em dar o seu nome, elevado à condição maiúscula, a praças, museus e produtos regionais.
Imagino uma Praça Salazar como um lugar triste e sombrio, ladeado de despidas e raquíticas árvores, onde o Sol nunca brilha e é sempre Outono, mesmo que na pujança primaveril de Maio. Terá bancos de jardim novos, mas com a tinta já carcomida pela idade, onde nem o mais sôfrego dos velhinhos se sentará a repousar. Imagino-a à imagem do País de 23 de Abril de 74. De luto pelos mais de dez mil mortos da Guerra Colonial. De um silêncio vergado ao peso da censura. Amedrontada pela perseguição da PIDE. Assombrada à noite pelos gritos dos presos políticos torturados, mortos e condenados, sem julgamento, ao degredo do Tarrafal.
E o Vinho Salazar? Região do Dão, colheita de 2012. Já me vejo a abrir uma garrafa e a verter o seu conteúdo para um copo alto, que imediatamente se transformará num daqueles copinhos de tasca, sujos e encardidos. E a saborear as suas distintivas notas de ácido acético, comparando a minha prova com uma qualquer revista de enologia – que bastou menos de uma semana em garrafa com tão sugestivo nome impresso no rótulo, para que o nobre e inocente néctar de Baco se transformasse no mais agreste e inclemente dos vinagres.
Quanto ao museu a erguer em honra das virtudes pessoais do ditador, imagino-o a ser tomado pela história dos vencidos, daqueles a quem o fascismo roubou sonhos e vidas. E que seja isto que as crianças aprendam das visitas de estudo. E que guardem para sempre na memória a imagem de um velho ridículo, que fazia ponto de honra da sua avareza e das suas botas cambadas, enquanto meia dúzia de famílias suas amigas enriqueciam para lá do inimaginável, e todo o resto da população vivia à míngua, muitos com fome, todos com medo…
Por mim, prefiro acreditar que o senso comum irá substituir as estátuas e imagens do tenebroso septuagenário por salazares, assim minúsculos e orgulhosos da sua função rapadora. E que essa será a melhor homenagem que se pode prestar à memória histórica do País, pois o salazar lembra-nos, muito mais que o outro maiúsculo, da miséria em que vivemos durante mais de 40 anos e do atraso a que fomos votados por força da ganância e de ideologias mesquinhas e mofentas.