quarta-feira, junho 04, 2008

Não por decreto!

"Palavras cria-as o tempo e o tempo as mata..."

José Cardoso Pires, in "O Delfim"

A perversão básica do novo acordo ortográfico está no facto de que é a maneira como se fala que condicionará a maneira como se escreve. Assim tem sido ao longo de todo o desenvolvimento das línguas e dialectos. Os portugueses pariram o português da mistura do latim com o suevo e com o árabe e sabe-se lá que mais palreares que por aqui pulularam em tempos idos. Passámos a escrever em português porque o latim, morto e enterrado, começava a ser língua snob a tresandar a sacristia.

O português soube mudar por si só, vivo e arisco, somando-se de novos vocábulos, mudando as letras ao sabor do marear da fala. Perdemos pê-agás de pharmácia depois de termos desusado a botica. Reinventámo-nos nos irrealismos de África quando os ritmados irmãos dançaram com as nossas línguas e nos deram novos mundos, que abalaram para o Brasil e aí fundaram a nação das nações do português.

Mas nós aqui vivemos no rectângulo do Eça. Do Pessoa e do Camões. Do Ary, do Eugénio, do Saramago. Nós aqui mudamos a nossa própria língua quando ano após ano, uma nova palavra, nova maneira de escrever, começa a pular de boca em boca, de folha em folha, de teclado em teclado, saindo para o meio da rua como o povo em vésperas de São João.

Temo, com um temor de expatriado, que ao ser decretada uma nova e estranha língua, seja ela a ditar como nós falaremos ao invés de sermos nós a deixar que ela mude.

Não hei-de escrever as minhas caras ou baratas palavras de forma diversa do que faço agora, se isso me for imposto por decreto. A minha pátria é a Língua Portuguesa, e dela não abdico por uma ditadura de ímpios e estranhos contornos economicistas.

Venham acordos e decretos, que cá estarei de facto. Venham novos correctores ortográficos subverter os computadores, que penas, lápis, aparas, o botão direito do rato e a opção "ignorar" cá estarão para lhes fazer frente. Comigo, o novo acordo não passará.

Mudarei o que falo e o que escrevo quando a Língua, viva e livre, assim o decidir, e nunca deixarei que ela parta agrilhoada num navio negreiro para o Brasil.

1 comentário:

Anónimo disse...

muito bem meu amigo, subscrevo tudo o que foi dito. beijinho. patricia seixo, mira