segunda-feira, novembro 01, 2010

Estradas cortadas

As velhas estradas nacionais do litoral norte e centro, a N1, a N109 e a N13 foram, durante décadas, o ponto de ligação e foco de crescimento de muitas povoações, que na altura desenvolveram-se numa lógica de comunidade de beira de estrada, subsistindo muito à custa do comércio de bens e serviços a quem passava. No final dos anos 80, princípio dos 90, com a A1 enfim completa e a apropriação da triste lógica do betão armado a partir dos fundos estruturais da CEE, começou a falar-se de variantes às estradas nacionais, alternativas que desviassem o trânsito das malhas urbanas, melhorando a mobilidade e promovendo a tranquilidade. Tratava-se, pois, de dotar uma das regiões mais densamente povoadas do país de alternativas rodoviárias às já insuficientes "estradas velhas". O tempo passou e apenas alguns troços da N1 tiveram direito a variante. Até aparecer a megalómana ideia das SCUT. Primeiro a A28, depois a A29 e a A17. Projectos à partida completamente insustentáveis e desnecessários. Por exemplo, a A29 é paralela à A1 até Estarreja, apenas corre ligeiramente mais a litoral. Ficámos, assim, com duas autoestradas que servem o mesmo percurso, com a diferença que uma era paga e a outra não. Depois temos a A17, também paralela à A1, mas desde Aveiro e com portagens a partir de Mira desde a data da sua construção. Aqui, grande parte do seu troço é de 6 vias, portanto, custou muito cara, só que quem por lá passa, arrisca-se a andar quilómetros sem ver mais ninguém.
A desnecessidade destas autoestradas é a verdadeira questão de princípio por detrás da minha completa e total discordância com o portajamento das SCUT. Onde era preciso modernizar as estradas nacionais através de variantes contínuas de uma via por sentido (duas vias nas subidas apenas), construíram-se auto-estradas insustentáveis e, por força disso, deixou de haver alternativa às "estradas velhas", que acabaram por ser completamente absorvidas pela malha urbana, de tal forma que é extremamente complicado viajar nestas. As razões dessa complexidade são por demais conhecidas, mas não me canso de as enumerar:

1) mobilidade natural dos peões nas localidades e o perigo associado;

2) piso degradado (muitas vezes dependente de um INE sem orçamentos de manutenção ou com este a reverter a responsabilidade para autarquias);

3) insuficiência de sinalética apropriada (as SCUT anularam a necessidade de se sinalizar os destinos das estradas nacionais, de tal forma que, num cruzamento ou rotunda, não fazemos ideia para onde devemos ir ou da direcção em que circulamos, pois as placas de indicação deixaram de ter os destinos finais, como Porto, Aveiro, Viana do Castelo, passando a ostentar, quando muito, a freguesia mais próxima; ainda há uns dias fiquei parado num cruzamento da 109 pois não fazia ideia onde fica Gulpiulhares ou Arcozelo, quando queria seguir no sentido do Porto; e noutro mais a sul, algures entre Maceda e Arada, quando queria ir para Aveiro);

4) os municípios encheram as "estradas velhas" de rotundas, stops, sinais de cedência de prioridade, semáforos, controlos de velocidade, passadeiras, lombas, de tal forma que não existe diferença rigorosamente alguma entre o traçado de uma EN e uma qualquer ruazinha interior de uma localidade;

5) as necessidades dos automobilizados locais levam-nos a circular, parar e estacionar nas estradas nacionais para usufruir dos serviços que aí se encontram tipicamente, dificultando e muito o trânsito de quem apenas circula em passagem;

6) o traçado urbano das EN deixou de ser praticável para pesados de mercadorias, só que estes ainda as usam (chegamos ao cúmulo de o trânsito na ponte de Fão, na EN13, ser interdito a pesados, mas desde que a A28 é a pagar, os camiões passam na mesma).

Tudo isto traz inconvenientes enormes, como perda de tempo, desgaste mecânico das viaturas, degradação do piso, desperdício desmesurado de combustível e consequente aumento da poluição, com riscos ambientais e de saúde pública e uma ampla degradação da qualidade de vida de todos. Para complicar mais ainda, o sistema de portajamento das ex-SCUT é absurdamente complexo e atenta contra a liberdade de circulação e o direito à mobilidade, indo radicalmente contra o espírito do Espaço Comum Europeu. Um cidadão estrangeiro que pretenda circular no nosso país fica completamente à nora, entre o despender balúrdios por um identificador (que na actualidade não se arranja pois estão esgotados), e o ter que viajar em estradas nacionais sem as mínimas condições de circulação nem requisitos de orientação. Já para não falar das dificuldades para as empresas de transportes de mercadorias, de passageiros e até para o mercado de aluguer de automóveis.
Circular no litoral norte e centro tornou-se um problema enorme a todos os níveis. Numa região que já era largamente prejudicada pelo centralismo e pelas fraudes do QREN, pelo desemprego e deslocalização de indústrias, pelo desinvestimento do Turismo de Portugal, pela arrogância lisboeta. É que, neste momento, não há maneira de chegar ao Porto por autoestrada sem ser a pagar.
No meio disto tudo, o que mais me choca e revolta é a passividade popular. Em vez de protestar e boicotar em massa o sistema, corre para as filas da Brisa - o único beneficiário desta medida absurda - onde desespera pela chegada do identificador da ViaVerde, enquanto que do outro lado da fronteira, empresários e instituições da Galiza já formalizaram queixa à Comissão Europeia. Eles, que têm uma rede de estradas exemplar, com autoestradas pagas, outras gratuitas, e estradas nacionais fantásticas, seguras, bem desenhadas, nas quais se pode atravessar o país inteiro sem qualquer tipo de restrições. Nós aqui comemos tudo o que nos dão, enquanto que os espanhóis que se sentem lesados por esta medida absurda das portagens, lutam pelos seus e nossos interesses. Sim, porque muitas empresas do norte e centro até já pensam em deslocalizar-se para a Galiza. Como isto está, eu diria que fazem muito bem.
Depois digam se o iberismo do Saramago estava assim tão errado!

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